Estou lendo Dostoiévski em ordem cronológica e chegou o momento difícil de falar sobre Noites Brancas, 4o romance do autor, publicado em 1848.

Difícil não pelo enredo que é até bem simples. Muito menos pela linguagem que traz todo o estilo inconfundível de Dostoiévski.
Difícil pelos sentimentos que ela (a obra) evoca.
O primeiro deles é o sentimento de abandono. O sonhador, nosso narrador - personagem , é um homem solitário, isolado, e sua interação com o mundo exterior se dá a partir da ilusão.
"Desde bem cedo começou a me afligir uma tristeza singular. Pareceu-me que de repente que eu, um solitário, estava sendo abandonado por todos e que todos se afastavam de mim."
Ele mora há 8 anos em São Petersburgo e nunca conseguiu estabelecer relações com ninguém. Ele se sentia íntimo das pessoas daquele lugar apenas pelo fato de vê-las no local e hora habituais, mesmo sem nunca terem interagido de verdade.
Essa ilusão alimenta nele o sentimento de abandono ao perceber que todos partiam da cidade para o campo devido o início do verão.
Essa tristeza do abandono é reforçada por outro sentimento muito forte no sonhador, a necessidade de pertencer.
Nós seres humanos necessitamos nos sentir parte de algo, formar vínculos.
Assim também é o sonhador que caminha por São Peterburgo na esperança de relacionar-se com o mundo.
Como ele não consegue criar laços com as pessoas (por uma imensa inabilidade social) , ele acredita se relacionar com os imóveis da cidade. Conversa com as casas, fantasia diálogos com elas e até acredita ter as que são suas "amigas íntimas."
Esse é o personagem que acompanharemos durante quatro noites e uma manhã vagando pelas noites brancas de São Peterburgo.
As noites brancas são um fenômeno atmosférico que ocorre na Rússia entre os finais de maio a meados de julho durante o qual o sol não chega a se pôr por completo, deixando as madrugadas claras.
Ele mora sozinho com uma senhora que trabalha para ele em um pequeno imóvel sujo, com paredes enegrecidas, o teto coberto por teias de aranha; uma desordem exterior que também reflete o seu estado interior perturbado e confuso, quase sufocando de dor.
É em uma dessas noites solitárias que o sonhador encontra uma moça chorando no parapeito de uma ponte. Ele a observa , mas não tem coragem de ir até ela , mas por um episódio involuntário os dois acabam por criarem uma interação.
A moça chama-se Nàstienka e chorava à espera de seu grande amor.
É nesse momento que o sonhador experimenta uma nova sensação, o entusiasmo.
Ele começa a contar para Nástienka a sua história de solidão e a sua busca por amor, um amor que mora apenas em suas ideias.
"Crio romances inteiros em meus devaneios."
Ele se define "um tipo" e um homem sem história. Uma pessoa bem ridícula. Uma criatura do gênero neutro, um sonhador.
Já temos resenha aqui no blog onde consta a definição que Dostoiévski dá a esse tipo de personagem que já foi trabalhado em A senhoria que também já tem post aqui e que serviu de laboratório para o homem do subsolo.
Nástienka forneceu ao narrador (que não possui nome ) uma atenção que ele jamais havia recebido. É como se esse gesto de ouví-lo e principalmente, compreendê-lo, o houvesse resgatado do seu mundo dos sonhos e o feito acreditar que era possível um momento de júbilo e felicidade inimagináveis para alguém tão só.
Ela se tornou única para ele porque, pela primeira vez, ele não experimentou o sentimento de indiferença. Ele existia, mesmo que brevemente, para além dele mesmo, para além das suas fantasias.
Quem nunca viveu de mãos dadas com a solidão e a melancolia que atire a primeira pedra na precipitação do nosso solitário narrador.
O combinado é que eles se encontrariam na noite seguinte e foi quando o sonhador conheceu a história da moça.
Nástienka é uma moça romântica e também sonhadora , mas com um senso de realidade mais apurado que a do seu novo amigo.
Ela mora com a avó cega que a mantém presa na barra de sua saia por um alfinete.
A avó possui um cômodo na casa que aluga para terceiros.
Nesse cômodo foi morar um jovem rapaz que começou a se relacionar com elas, emprestava romances de Walter Scott e Púchkin, levava ao teatro e Nástienka se apaixonou perdidamente por ele.
Ele disse corresponder a seu amor, porém necessitava ir para outra cidade por um ano e que ela o esperasse no dia e hora marcados que eles se encontrariam para ficarem juntos.
O dia , a hora e o local marcados era o dia em que ela chorava na ponte e conheceu o sonhador. Ele, o amado, no entanto não havia aparecido.
Ouvir a história da moça despertou um novo sentimento em nosso solitário personagem, o sentimento da empatia.
Ele, uma pessoa extremamente solitária, pela primeira vez sentiu pulsar em seu peito a dor de outro coração.
Ele decide ajudar Nástienka em busca por uma resposta. Ele já a amava e mesmo assim estava disposto a sacrificar o seu coração pela felicidade dela.
Não irei contar o que acontece a partir desse ponto da narrativa, tampouco o desfecho da história de ambos para não estragar a experiência literária de vocês, mas posso dizer que uma das coisas que mais me toca nessa obra de Dostoiévski é essa disponibilidade íntima do sonhador de olhar para o outro de forma amorosa e de fazer algo que poucas pessoas são capazes: a de desejar o bem a quem nos rejeita e olhar para esse ato não com rancor ou mágoa, mas com gratidão pelo que foi vivido, ou melhor, sentido.
Esse livro fala de solidão, melancolia, amor , vazio existencial, empatia, mas fala também e (acredito eu) principalmente, do quanto pessoas, mesmo que temporárias, são capazes de nos salvar até de nós mesmos.
Pessoas que não vieram para ficar , mas que tocaram em nossa vulnerabilidade e nos acolheram de alguma forma. Essas pessoas não precisam ficar para significar. Até porque nada (nem ninguém) fica eternamente.
Quando aceitamos a lei máxima da vida que é a impermanência, passamos a valorizar as conexões temporárias de forma mais grata.
Eu não acredito em conexões erradas e acho que Dostoiévski também não.
Todos aqueles com quem nos relacionamos tem algo para nos mostrar que sem eles não enxergaríamos.
Isso é tão profundo e real na obra que dá até para tocar com a mão.
Sem Nástienka, nosso sonhador não teria tido seu momento de júbilo que valeria por sua vida inteira e sem o sonhador, Nástienka não teria tido seu coração acalentado em um momento de dor. Durou O SUFICIENTE.
É uma obra linda, poética, melodramática sim, mas repleta de reflexões atemporais e que por isso mesmo resistiu e chegou até nós.
Fiquei com muita vontade de ler o livro, já havia anotado a tua dica antes... Vou tentar encaixar nos próximos meses 😁