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Gente pobre (Dostoiévski)

Um livro que me despertou um sentimento profundo de compaixão pelo próximo foi Os miseráveis de Victor Hugo.  Nele, o escritor francês nos faz enxergar a situação do pobre, do homem faminto, da mulher que passa por diversas humilhações para sobreviver, da infância perdida, de uma forma muito pungente.


Um outro livro que me trouxe sentimentos semelhantes foi Gente pobre, romance de estreia de Dostoiévski.


Refletindo sobre esse efeito que a literatura causa em nós leitores, lembrei-me o que disse Sartre em seu livro "O que é literatura?".


Nele, Sartre vai dizer que o escritor não cria nada para si, que ele (autor) pode até apreciar o efeito de um traço, de uma máxima, mas só pode avaliá-lo e não senti-lo porque trata-se de efeito que será produzido nos outros. E ele vai concluir dizendo


"Só existe arte por e para outrem."


Mas esse efeito provocado pela literatura não é o mesmo em todos os leitores. Sartre também vai dizer que isso depende da disposição do leitor. A leitura, segundo ele, não é uma operação mecânica.  Se o leitor estiver distraído, cansado, confuso e desatento, a maior parte das relações lhe escaparão. E vai dizer que


"(...) o objeto literário, ainda que se realize através da linguagem, nunca é dado na linguagem; ao contrário, ele é, por natureza, silêncio e contestação da fala. Do mesmo modo, as cem mil palavras alinhadas num livro podem ser lidas uma a uma sem que isso faça surgir o sentido da obra; o sentido não é a soma das palavras, mas sua totalidade orgânica. Nada acontecerá se o leitor não se colocar, logo de saída e quase sem guias, à altura desse silêncio."

E esse silêncio é aquilo que o autor não diz. É o que não está expresso, mas que confere densidade ao texto. É o inexprimível. Segundo Sartre, não o encontramos em nenhum momento definido da leitura. Está em todo lugar e em lugar nenhum porque esse inexprimível (e Sartre vai citar alguns exemplos como o grau de realismo e verdade da mitologia de Kafka) não é dado,  é preciso que o leitor vá além da coisa escrita guiado pelo autor.


"Em suma , a leitura é uma criação dirigida."

Ler Dostoiévski é preciso ter essa disposição falada por Sartre para sentir o inexprimível e o efeito produzido por suas palavras é permanente.


Gente pobre, sua obra inaugural, escrita quando ele tinha 24 anos e publicada em 1846, é um romance epistolar, ou seja, a narrativa é composta por troca de cartas. Nesse tipo de texto não temos um narrador onisciente que tudo sabe e compartilha com o leitor. Portanto, a visão de mundo narrada é limitada.


Nele, Makar Diévuchkin (homem mais velho, funcionário público - copista ) e Varvara Aleksêievna (uma jovem orfã) trocam cartas por um curto período de tempo,  mais precisamente de abril a setembro, provavelmente na década de 1840 em São Petersburgo.


Makar se coloca como seu protetor, inclusive a ajuda financeiramente tirando até mesmo de si para que Varvara não passasse tantas necessidades.


Os diálogos presentes nas cartas são descrições sobre a situação de cada um, sobre o local onde residem, a pobreza, a fome. Aos poucos também vamos conhecendo o passado da menina no campo, a sua infância dourada e como chegaram à situação degradante em que se encontram. São dessas conversas que surgem reflexões sobre a própria vida e nascem sentimentos como vergonha e desprezo por si mesmo.


Assim, Dostoiévski traz de volta à cena literária a temática do "homem sem importância" narrando a maneira como o miserável se via e era visto naquela sociedade.



A temática do "homem sem importância " foi inaugurada na literatura russa com Nikolai Mikhailovich Karamazin com sua obra Pobre Liza de 1782, mas foi Púchkin com o conto "O chefe da estação " quem colocou no protagonismo um funcionário de baixa patente de forma mais humanista.


Outro autor que dá continuidade à esse tema é Gógol com seu conto O capote.  Esse conto, assim como "O chefe da estação", é de grande relevância para a narrativa de Gente pobre por que é através dele que Dostoiévski vai se contrapor à maneira como os "homens sem importância" eram retratados  na literatura, de uma maneira ridicularizada e desumanizada.


Púchkin e Gógol foram escritores importantes para Dostoiévski, tanto que é atribuída a ele a famosa frase "Todos nós saímos do capote de Gógol".


Retornando à Gente pobre,  esse paralelismo entre a vida feliz no campo e a vida triste na cidade , especialmente em São Petersburgo,  vai estar presente. Essa questão é abordada em vários romances russos. Aqui em Gente Pobre caberá a Varvara nos dá essa visão. Ela dirá


" E acho que teria sido muito feliz se me tivesse tocado morar no mesmo lugar, sem ter que sair do campo, ainda que por toda a minha vida. Entretanto, ainda criança fui obrigada a deixar meus lugares queridos. Tinha apenas doze anos ainda quando mudamos para Petersburgo. Ah, com que tristeza me lembro de nossos melancólicos preparativos!"

E a vida na cidade foi realmente muito difícil para Varvara. Ela perde os pais, a sua saúde enfraquece (ela é uma jovem sempre muito doente) e as privações financeiras se tornam imensas.


Ela encontra apoio, amizade e um pouco de conforto em Makar. Ele se autosacrifica por Varvara. Abre mão de se alimentar, deixa de pagar por suas necessidades básicas, anda maltrapilho,  tudo para dar-lhe presentes, para proporcionar a ela um certo prazer.


"E além disso, minha filha, para mim é uma felicidade especial poder satisfazê-la; é esse o meu único prazer."

Essa questão do autosacrificio é muito presente em Dostoiévski.


Outro ponto que me chamou bastante atenção foi a presença constante do livro. Os personagens lutam para preservar a sua dignidade através de uma formação intelectual. A literatura é a forma que eles encontraram para sair da degradação moral em que viviam. Apesar da fome, da doença, do desespero, da falta de respeito público, eles liam, trocavam livros, compartilhavam suas experiências com a leitura.


Eles eram leitores de Púchkin e Gógol e esses autores provocaram reações bem distintas em Makar.


Makar vai fazer uma defesa muito bonita da literatura. Ele vai dizer que


"A literatura é uma coisa boa, Várienka, muito boa; (...) É algo profundo! É algo que edifica e fortalece o coração das pessoas. (...) A literatura é um quadro, ou seja, em certo sentido um quadro e um espelho; é a expressão da paixão, uma crítica tão fina, um ensinamento edificante e um documento."

Varvara em determinado momento da narrativa também irá perceber o poder que os livros podem exercer na vida de uma pessoa.


"Pokróvski sempre me emprestava um livro; de início eu lia para não adormecer, depois com mais atenção,  depois com avidez; de repente foi se abrindo diante de mim um mundo de coisas novas, que até então ignorava e desconhecia. Novos pensamentos e novas impressões afluíam de uma só vez, numa torrente caudalosa, ao meu coração. E quanto mais inquietação, quanto mais perturbação e esforço me custava a acolhida dessas novas impressões, mais caras elas me eram, mais docemente abalavam toda a minha alma. De repente elas foram se aglomerando em meu coração, de uma só vez, sem lhe dar descanso. Um estranho caos começou a sublevar todo o meu ser."

Essa busca pela intelectualidade contrasta com a miséria em que se encontravam. Os livros foram a forma que eles encontraram de não se deixarem embrutecer pelo meio.



Dostoiévski está nos mostrando que as pessoas de classes mais baixas, mesmo as mais miseráveis,  são seres humanos capazes de ter uma vida mais elevada através da literatura.  A literatura está acessível a todos, independentemente de condição social. Como disse Antônio Cândido, a literatura é um direito humano básico.


“São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura. (O direito à literatura).

Isso vai de encontro a um pensamento corrente da época de que a pessoa é determinada pela hereditariedade,  pelo meio e por seu momento histórico, o determinismo de Hippolyte Taine.  Esse pensamento era a base das narrativas naturalistas.


Ora, se o meio determina o comportamento do individuo, os personagens de Gente Pobre estão a todo instante lutando contra isso.


O determinismo presente nas cartas de Makar é de outra origem. Está muito mais ligado ao dilema de Deus do que ao determinismo de Taine.


Observe como ele entende os infortúnios pelos quais os pobres passam.


"Permita-me, minha filha: qualquer condição que caiba ao homem é determinada pelo Todo poderoso. A um foi determinado usar dragonas de general, a outro, a servir como conselheiro titular, a este a mandar, àquele a obedecer, submisso e amedrontado. Isso já é calculado de acordo com a capacidade da pessoa; esta tem capacidade para uma coisa, enquanto aquela,  para outra, e as capacidades são concedidas pelo próprio Deus. "

É com base nesse tipo de determinismo que Makar acreditava o tempo todo que ninguém foge do seu destino. Ora, se o destino do ser humano é definido de acordo com suas capacidades e suas capacidades são concedidas por Deus, não há como o homem ser agente da sua própria transformação. O destino é certo, determinado e imutável. Não há esperança,  só o conformismo.


Esse conformismo Makar também expressa em uma de sua cartas


"Eu me acostumei, porque me acostumo com tudo, porque sou um homem pacífico, porque sou um homem sem importância."

Para os personagens de Gente Pobre (não apenas os protagonistas Makar e Varvara) essa luta contra a degradação moral tinha um sentido. Isso os afetava de forma mais cruciante que a própria pobreza.


Makar vai dizer em determinado momento que


" Sabe o que acaba comigo, Várienka? Não é o dinheiro, são essas atribulações cotidianas todas, são essas zombarias, esses cochichos, esses risinhos todos que acabam comigo."

E em outro momento irá declarar que


"(...) ouça - me bem, minha filha  - , juro que por mais perdido que estivesse, por causa da minha mágoa espiritual dos dias cruéis da nossa desdita, ao olhar para você, para a sua desgraça, e para mim mesmo, para a minha humilhação e a minha inépcia, apesar disso tudo, juro-lhe que os cem rubros não me são tão caros quanto o fato de Sua excelência em pessoa ter se digna do a apertar-me a mão indigna, a mim, um pulha, um bêbado! Com isso ele restituiu-me a mim próprio. "

Um outro personagem (o Gorchkov) ao ser inocentado em um processo judicial que havia se tornado um motivo de vergonha pública e com isso recebeu uma boa indenização, também vai menosprezar o dinheiro recebido em relação ao respeito que o fim do processo o fez recuperar. Ele dirá


"A honra, a minha honra, o meu bom nome, meus filhos,  - e falava de um jeito ! Começou até a chorar. "

E isso realmente tem um valor inestimável,  não é leitores?


O final dessa história me deixou DEVASTADA. Em uma sociedade desigual como a deles (e a nossa) há esperança para pessoas como Makar e Varvara? A que é preciso submeter-se para ter um pedaço de pão? Quais humilhações se está disposto a passar para sobreviver? As respostas deixo por conta de vocês.







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