Quando iniciei a leitura de A Senhoria, terceiro romance de Dostoiévski, eu tinha de antemão a informação que o livro trataria de um tipo psicológico muito importante para o conjunto da obra do autor: o sonhador.
Já falamos sobre esse tipo sonhador que é muito bem caracterizado pelo próprio Dostoiévski no livro "Crônicas de Petersburgo " e que já tem resenha aqui no blog.
Esse personagem sonhador também será central na próxima obra de Dostoiévski, o romance Noites Brancas de 1948.

A Senhoria, que foi publicado em 1846, está dividido em duas partes: na primeira, conheceremos Ordínov, sua história e suas características psicológicas. Nessa primeira parte também é apresentado um conflito importante para o autor russo: a relação entre o ideal e o real.
Solitário, introspectivo, isolado do mundo e da vida em sociedade, é assim que conhecemos Ordínov.
Ele tem paixão pelos estudos, pela ciência, não conheceu os pais e desde criança era esquisito e diferente dos demais.
Ele recebeu uma herança de seu bisavô com o qual conseguia se manter em sua reclusão, mas foi forçado a andar por Petersburgo, pois a sua antiga senhoria (dona do apartamento onde Ordínov havia alugado um quarto) iria se mudar e ele precisava conseguir outro lugar para morar.
Ordínov era um idealista, estava criando seu próprio "sistema " e não tinha nenhuma habilidade para a vida prática, cotidiana e isso o fazia se relacionar com o mundo exterior "como uma criança".
Ordínov, ao ser forçado a sair de sua reclusão e experimentar o mundo, se sentiu alegre, como um embriagado, "como um faminto quando, após longo período sem comer, é oferecido alimento", sentia prazer em andar pelas ruas, tudo o surpreendia.
Esse contato com o mundo exterior perambulando pelas ruas de Peterburgo o fez se ressentir por ter vivido tanto tempo isolado e solitário, se asselvajando.
Mas, pouco a pouco, essa realidade passou a angusitá-lo e a oprimí-lo, pois esse contato com o real o fez perceber que ele nunca havia amado ou sido amado por alguém.
Ele que pela manhã se recriminava por sua selvageria, fugiu de tudo que pudesse perturba-lo no mundo exterior e sentiu falta da sua reclusão que era um local seguro e conhecido.
Nessas andanças pela cidade, Ordínov entra sem querer em uma igreja e avista uma mulher jovem e de uma beleza celestial acompanhada de um senhor bem mais velho que ela.
Ele fica instantaneamente fascinado por ela a ponto de seguir o estranho casal que se chamavam Múrin e Katierina.
Múrin é conhecido por todos como feiticeiro, bruxo, um místico, um "homem que exercia uma influência terrível sobre as pessoas que o procuravam."
Katierina era uma mulher que vivia rezando ajoelhada em frente a um ícone, quer seja na igreja ou em sua casa, não como uma espécie de devoção, mas de autopunição.
Múrin e Katierina, que inicialmente não sabíamos qual parentesco os uniam e mais tarde saberemos se tratar de marido e esposa, possuem um alojamento vago em sua residência e Ordínov acaba mudando-se para lá e se tornando seu inquilino.
É daí que vem o nome do livro de A Senhoria , pois essa mulher, Katierina, que encanta Ordínov se torna sua senhoria e a partir desse encontro a vida dele fica como que "partida ao meio".
Após mudar para a casa dos seus novos senhorios, Ordínov é tomado por uma febre que o faz perder a consciência diversas vezes.
Em muitas ocasiões Katierina visita o seu quarto e corresponde aos seus desejos, mas esse adoecimento de Ordínov acaba nos inserindo em uma narrativa onírica e confusa, onde não conseguimos distinguir se o que acontece é fruto dos delírios do doente ou a realidade.
A primeira parte finaliza com um questionamento de Ordínov sobre quem seria Katierina e porque ela rezava tanto e com tanto ardor e angústia no coração.

Na segunda parte iremos conhecer a história de Katierina e é nessa parte onde o livro ganha uma dimensão psicológica maior e essa é a minha frustração (digamos assim) com o livro, pois achei que o autor não aprofundou o bastante na psique do sonhador que , na minha opinião, é melhor trabalhada no livro seguinte, Noites Brancas.
Para mim, a personagem mais profunda e complexa do livro é Katierina porque é nela e em sua complicada relação com Múrin que Dostoiévski abordará um tema que já vi presente em outras obras do autor com diferentes matizes, o tema do "coração fraco" que nessa obra está intimamente ligado a outro tema importantíssimo para Dostoiévski, o tema da liberdade.
Kant vai dizer que a verdadeira liberdade é aquela exercida racionalmente em um estado de autonomia. Já na heteronomia de Kant, ou seja, quando o ser estar agindo sob determinações exteriores, não há liberdade.
Nós, seres humanos, procuramos nos submeter a um outro (geralmente um tirano) para nos sentirmos seguros e não nos responsabilizarmos pelas nossas escolhas porque estas nos angustiam, ou seja, agimos por heteronomia.
Essa submissão voluntária (mesmo que inconsciente) ao outro é o que eu entendo que Dostoiévski chamará nesse livro de coração tolo ou coração fraco.
Nikolai Berdiaev em seu livro "O espírito de Dostoiévski " dirá que todos os romances de Dostoiévski representam a experiência da liberdade humana.
Isso fica claro quando Katierina começa a contar a sua história para Ordínov e como ela foi parar em Petersburgo vindo da região do Volga com aquele homem que representa para ela uma salvação, mas também uma fonte de pecado.
Ela conta que quando criança ela e a mãe recebiam a visita de Múrin quando seu pai estava ausente, insinuando uma relação clandestina entre eles.
Certa vez, o pai recebeu uma notícia de que seus barcos haviam sido destruídos pela tormenta do rio e partiu deixando-a sozinha com a mãe.
Múrin apareceu na residência nesse momento e houve uma discussão entre ele e a mãe de Katierina e entre Katierina e a mãe por conta de um presente que Múrin levou para ela. É nesse momento que a mãe insinua à filha que Múrin é seu verdadeiro pai.
Cinco dias após esse episódio, o pai de Katierina retorna e reforça a vigilância da casa pressupondo uma ameaça, mas ela própria permite a entrada do inimigo da família em sua casa. Ocorre um grave incêndio e seus pais morrem.
Após esse acontecimento, Múrin coloca novamente a liberdade de escolha de Katierina à prova quando ela o ajuda a sair da residência sem ser notado e foge com ele.
Múrin lhe faz uma promessa de restituir-lhe a sua "liberdadezinha dourada " caso ela deixasse de amá-lo, mas isso teria um preço, a própria vida de Múrin.
E dessa forma o velho manipulava Katierina com o preço da liberdade. "Se deixar de me amar a deixarei livre, mas será o meu fim", "Se eu morrer, voltarei para buscá-la", etc. Essa "liberdadezinha dourada" era muito cara para Katierina.
Lembrei-me daquela frase de Sartre que diz que "O homem está condenado a ser livre".
Estamos irremediavelmente condenados à liberdade e como diz Berdiaev, para Dostoiévski o caminho da liberdade nem sempre nos conduzirá para o bem porque o gozo da liberdade supõe também a escolha do mal e da própria aniquilação.
Quando Ordínov escuta a história de Katierina surge nele um ímpeto de libertá-la desse jugo do velho feiticeiro, mas que se reduz brevemente a cinzas. Ele até tenta uma reação contra o bruxo, mas é incapaz de concretizá-la.
Múrin faz Katierina acreditar que ao deixar-se apaixonar por outro homem, ela o seguirá como uma escrava e será o fim da liberdade que ela julga possuir e que a entregará voluntariamente ao seu corruptor. Como se ela já não o tivesse feito quando fugiu com ele.
Depois dessas palavras do bruxo, Katierina expulsa Ordínov do alojamento.
Nesse momento, o velho riu seu riso tirânico e vencedor, aniquilando totalmente seu adversário, Ordínov.
Katierina decreta seu destino através da sua liberdade de escolha, uma liberdade forjada na manipulação de Múrin, não uma liberdade kantiana, mas ainda assim liberdade , algo que é muito explorado por Dostoiévski em obras futuras.
Por isso que Múrin dirá a Ordínov que ela tem o coração fraco e para um coração fraco "nem a liberdade de nada serve" porque é incapaz de fazer escolhas sensatas e autônomas.
Com a rejeição de Katierina, Ordínov se torna mais selvagem do que antes, se fecha ainda mais em si mesmo, mas sem o ardor da antiga paixão pela ciência e pelo estudo. Seus pensamentos não se convertiam em atos e toda impotência da sua alma sonhadora veio à tona.
Não é um livro de fácil leitura. A narrativa ficou por diversas vezes cansativa e confusa, mas é uma obra com inúmeras camadas e que valeu a pena o esforço para terminar (acho que direi isso ao fim de todas as obras de Dostoiévski 🙂).
A reflexão sobre o tema da liberdade foi o que mais ficou em mim durante e após a leitura e guardarei para sempre esse trecho:
"Para um coração tolo, nem a liberdade de nada serve."
Excelente resenha 👏
Pelo jeito todas as obras de Dostoiévski são uma viagem 🤯