Na dedicatória a possíveis leitores em "A paixão segundo G.H" , Clarice irá dizer qual tipo de leitor ela deseja para os seus livros, um leitor experimentado na autorreflexão. E isso não apenas para essa obra em específico. Cada um de seus contos e romances irá solicitar do leitor essa disposição, essa entrega , essa vontade de mergulhar com ela na imensidão obscura, nebulosa que é o íntimo de cada um.

Ela dirá
"Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria. C. L"
Advertência: Se não estiver aberto, nem entre.
Esse é o espírito para ler Clarice Lispector. Não espere encontrar sentido na palavra dita. O que não está dito diretamente soa muito mais alto e forte.
O instante - já. Se pudéssemos dizer que Água viva tem um enredo, a reposta seria essa. A busca pela essência do instante. Aquele que não tem passado nem futuro e que simplesmente é.
Mas é um fio condutor frágil como a própria autora diz. Sua escrita vai muito além para ficar confortável dentro de um tema, mas o utilizarei aqui de ponto de partida porque preciso dizer algo e nem sei por onde começar.
Clarice vai dizer que "Cada coisa tem um instante em que ela é." E continua dizendo: "Quero apossar-me do é da coisa." Ou seja, penetrar no âmago do instante, tocar no que há de palpável no já, mas no mesmo instante em que a coisa é, já deixa de ser , assim como ela própria.
"O presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já".
A cada instante que passa, ela também não é mais a mesma. A atualidade é um recriar-se constante. É a eterna busca pelo que fica atrás do pensamento, mas atrás do pensamento apenas és-se. Então, talvez, o instante - já seja o próprio ser. Ou a própria morte do ser que no instante seguinte já é outro, renascido, recriado.
Será que existe uma forma de capturar esse instante em que somos? O instante - já? A coisa em si, a sua essência? Talvez, só talvez porque Clarice nunca nos dá certezas, essa forma seja através da palavra (por mais limitada que a linguagem seja).
Palavras escritas para "alguém ". Alguém não identificado no texto e por isso mesmo, pode ser qualquer um, ou talvez ninguém.
E para esse "alguém/ninguém" ela escreveu esse romance que não é romance , mas um objeto gritante.
Sim, é isso. Água viva é um grito.
Então ela escreve e pinta na tentativa de ser, de criar-se a cada instante através da arte.
Mas ela, que é mais pintora que escritora está ainda se descobrindo nessa "densa selva de palavras" e é por isso, e também por escrevê-las de pronto, no exato momento em que elas surgem, sem retoques, sem preocupações de estilo, que elas podem soar ilógicas e desvairadas.
Na verdade, suas palavras não sofrem de ausência de estilo, mas assim como a vida, têm "um estilo oculto." Ela as escreve sempre no já.
Nessa longa carta para "alguém/ninguém" ela vai se revelando. Uma vida anterior que mais parecia a morte.
Podemos estar mortos em vida, sabia? Semi mortos ou semi vivos... seja como for. Ou como ela nos diz "mal e mal viva."
Essa experiência de "quase - morte" é comum ao longo da vida, ou melhor, da existência. Eu mesma já morri muitas vezes. Tenho certeza absoluta que morri. A morte é inconfundível.
"Eu - eu sou a minha própria morte."
Assim como ela (a narradora - pintora - escritora) morreu para enfim poder nascer e é esse (re) nascimento que acompanhamos durante boa parte da leitura.
Esse processo de nascer é doído. Requer alguns avanços e retrocessos, mas é preciso ter força. É preciso comer a própria placenta.
"(...) o processo dói. Vir-a-ser é uma lenta e lenta dor boa. "
E quando a dor se torna latejante, a ferida na carne exposta, eis o sopro de vida, o sopro do it. A criação divina de uma força que não está apenas no homem, mas também nos bichos, nas flores, em tudo o que vive.
Tem algo de divino na vida, algo de sobrenatural. E reconectando-se com essa força originária, seja através da natureza ou outro humano, é que se revive. Eu tenho essa visão que a vida se dá em comunhão.
E depois que se (re)nasce ? O que vem depois? Vem a continuação.
Esse ciclo de vida e morte que não acaba até a morte última. Assim como essa grande carta - livro - romance - grito que não tem fim na última página. Continua.
"Terei que morrer de novo para de novo nascer? Aceito."
Esse livro é água viva. Fere, queima, causa incômodo, deixa marcas. Na pele e no coração.
Já tentei ler este livro e acabei deixando de lado logo nas primeiras páginas.... Dá autora só finalizei até hoje a leitura de "A hora da estrela". Em um futuro distante pretendo ler outras obras da autora 😅