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Do que eu falo quando eu falo de corrida (Haruki Murakami)

Atualizado: 30 de out.


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Nunca fui adepta da atividade física.

Meu modo de sentir a vida sempre foi mais intelectual e digo “intelectual” no sentido de que minha tentativa de compreender as coisas, ou ao menos de atribuir algum significado à ( minha própria) existência, sempre  se deu, sobretudo, por meio da análise, da reflexão, dos conceitos. Muito pouco pela via da experiência empírica.


Acredito que isso tenha muito a ver com minha natureza, mais inclinada à introspecção do que à comunhão. Talvez por isso eu me sinta um pouco deslocada em ambientes coletivos como, por exemplo, a academia, onde a energia compartilhada parece exigir uma presença que não me é natural.


A experiência concreta, o corpo em movimento, sempre me pareceram territórios estrangeiros.


Mas em 2025 esse padrão começou a se transformar, ainda que suavemente.


Viajei mais, aceitei convites de amigas que antes recusava e encontrei um novo hobby: CORRER.


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A corrida, por ser um esporte individual e ao ar livre, se encaixou com precisão no meu modo de ser e tenho, finalmente, encontrado a constância na atividade física pela primeira vez na vida .


Viajar, conviver , correr , são tentativas de sentir a vida na forma bruta , através de vivências, que poderão ou não se transformar em narrativas como estou tentando agora transmitir nesse texto.


Sentir com o corpo e não apenas com o raciocínio. Permitir que o corpo, enfim, também participe da experiência de estar viva.


Em “O narrador”, Walter Benjamin vai dizer que com o advento da modernidade empobrecemo-nos em experiências, perdemos a capacidade que nos era muito natural de contar histórias que tinham como base um saber oriundo de uma vivência experimentada. Passamos a ler romances no nosso quarto, que por sua vez, também foram escritos em aposentos solitários, isolados da coletividade.


Nesse ensaio, Benjamin vai dizer que o narrador figura entre o mestre e o sábio . Ele, o narrador, recorre quando oportuno ao seu acervo particular , ora baseado nas suas próprias experiências, ora nas experiências alheias . Percebi que meu acervo íntimo é bastante modesto e limitado, e me pus esse ano a tentar vivê-las.


Mas, voltando à corrida, como nosso eu mais profundo nunca nos abandona nas escolhas que fazemos , não é de se surpreender eu ter me adaptado melhor a um esporte que eu possa praticar sozinha e que, ao mesmo tempo , me permita fundir o pensar, o sentir e o executar numa coisa só, numa só experiência.


Experimentar é viver e viver para (quem sabe) narrar.


Foi esse meu modo de ser que me fez conectar com Murakami, quando ele fala em Do que eu falo quando eu. falo de corrida:


“Talvez pareça um pouco tolo alguém com a minha idade dizer isso abertamente, mas apenas quero ter certeza de que os fatos a seguir vão ficar bem claros: sou o tipo de sujeito que gosta de estar sozinho consigo mesmo. Para dizer de um modo mais agradável, sou o tipo de pessoa que não acha um sofrimento ficar só. Não acho que passar uma ou duas horas correndo sozinho todos os dias, sem falar com ninguém, além de passar quatro ou cinco horas sozinho em minha mesa, seja difícil nem chato. Tenho essa tendência desde que era mais novo, quando, caso tivesse escolha, preferia ficar sozinho lendo um livro ou concentrado ouvindo música a estar na companhia de alguém. Sempre fui capaz de pensar em coisas para fazer quando estou sozinho.”

Ele também vai dizer que


“O desejo que há em mim de permanecer sozinho não mudou. Eis por que a hora e pouco que passo correndo, preservando um tempo só meu, em silêncio, é importante para me ajudar a manter o bem-estar mental. Quando estou correndo, não preciso conversar com ninguém e não tenho de escutar ninguém falando. Tudo que tenho a fazer é olhar a paisagem que passa por mim. Essa é uma parte de meu dia sem a qual não consigo viver.”

A corrida como um momento de introspecção, tal qual a leitura, mas desta vez, com o corpo. Cansando cada músculo na busca pela tal endorfina, e encontando uma verdadeira possibilidade de cartase. Murakami descreve essa experiência como um estado em que a mente entra num vácuo absoluto. Comigo não é bem assim. Corro e, ao mesmo tempo, penso muito; sinto muito. Nunca experimentei o vazio mental que ele descreve. É, para mim, mais como uma iluminação, uma clareza intensa que me invade a cada passo. Talvez essa sensação de vazio seja mais comum entre maratonistas, corredores de longas distâncias, o que não é o meu caso .


Mas compreendo perfeitamente quando ele diz que a corrida é, além de um exercício, uma metáfora e escrever sobre é uma maneira de dar forma ao que sentimos e vivenciamos. Foi essa ideia que me aproximou do autor, que me fez reconhecer na corrida não só movimento, mas também reflexão e narrativa.


Murakami entrou para o mundo da corrida (hoje um maratonista consolidado com mais de 25 maratonas) quando, aos 30 anos , decidiu fechar o seu bar de jazz em Tóquio e se tornar um romancista . A corrida surgiu como substituta do trabalho físico que ele fazia no bar, ajudando-o a manter o peso sob controle.


É curioso como o motivo que nos leva a iniciar algo, seja um hobby, uma carreira ou uma prática cotidiana , quase nunca é o mesmo que nos faz continuar. Foi exatamente isso que aconteceu com Murakami e a corrida, e também comigo. O escritor começou apenas para ter uma atividade física que o mantivesse em um peso “aceitável”, permitindo-lhe passar horas sentado escrevendo sem maiores dificuldades. Mas, com o tempo, a corrida ganhou outra dimensão: tornou-se essencial, ao ponto de Murakami confessar que não saberia mais quem seria sem correr todos os dias.


Por isso, vou na contramão do pensamento comum que diz: “quando estiver cansado de fazer algo, lembre-se do porquê começou”. Na verdade, acredito que não podemos esquecer é daquele motivo implícito, silencioso, que nos faz continuar dia após dia, passo após passo, a fazer a mesma coisa, mesmo quando já não nos lembramos do começo.


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Murakami começou a correr para controlar o peso, mas como ele mesmo diz, descobriu na corrida uma metáfora para a vida. Cada km superado, cada dor vencida, cada esforço máximo é um exercício de persistência e é essa mesma disposição que ele aplica em sua jornada como romancista, procurando se superar livro após livro. Ele menciona que não gosta de seus primeiros textos, mas são justamente esses primeiros que nos levam aos melhores.


Particularmente, gosto de ser iniciante em algo. Ser iniciante me dá ânimo, desperta disposição para evoluir. Não me sinto nem um pouco desanimada ao ver que corro 5 Km em 40 minutos, enquanto corredores mais experientes fazem abaixo de 30. Pelo contrário,  sinto aquela alegria de principiante, celebrando cada pequeno sucesso. Olhar para fevereiro, quando comecei a correr e perceber o quanto meu ritmo melhorou, me dá garra para continuar. Acredito que, à medida que nos tornamos bons em algo, nos tornamos críticos demais.


Gosto desse conceito da corrida como metáfora da vida. Ela nos ensina a amar a rotina, a repetição, a disciplina  e, aos poucos, esse aprendizado se espalha por outras áreas da existência. Assim como, para Murakami, escrita e corrida são tão intrincadas que praticamente se tornam uma só coisa.


Quando lhe perguntam o que faz de alguém um bom escritor, Murakami responde que é a combinação de três fatores: talento, concentração e perseverança. O talento é algo inato, mas os outros dois (concentração e perseverança) podem ser moldados e ele o faz na pista. É ali, no esforço repetido de cada passo, que se aprende o foco, a constância, a paciência. Sem isso, não se mantém a corrida. Sem isso, não se escreve um livro. E, talvez, sem isso, não se sustente nenhuma trajetória. O talento, ele diz, é essencial, mas nunca suficiente. Foco, esforço e persistência podem levar alguém muito mais longe do que se imagina.


Mas é preciso não romantizar o esporte. Correr dói. É preciso ir além da dor, suplantar a dor. Murakami começa seu livro dizendo exatamente isso, e nos recorda, à maneira de Carlos Drummond de Andrade em seu poema “Definitivo”, que “a dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional.”


Quanto de dor você é capaz de suportar para ser um romancista? Quanto de dor é capaz de suportar para se tornar um maratonista? E, sobretudo, quanto de dor é capaz de suportar para viver a vida que deseja?


É essa capacidade de, muitas vezes, suportar o  insuportável que separa os que perseveram dos que desistem. Os que ficam pelo caminho dos que alcançam a linha de chegada.


A dor, na filosofia, tem um papel essencial. Na verdade, é o sofrimento (que se distingue da dor) que ocupa esse lugar.


A dor é física. O corpo sente, chora, grita.


O sofrimento é a elaboração psíquica que fazemos dessa dor; a maneira como a mente interpreta e prolonga aquilo que o corpo apenas sente por um instante.


Correr dói. Viver também. Por isso, sofrer é opcional.


A dor é inevitável. Seu corpo vai senti-la.  Não está acostumado a ser desafiado dessa forma, mas a maneira como elaboramos essa dor, o que fazemos dela, depende de cada um. A dor existe, mas o sofrimento é uma escolha metal.


O estoicismo nos ensina isso. Ele nos mostra que a dor (aqui entendida  como sinônimo de sofrimento) é parte inevitável da vida a qual podemos ou não nos deixar afetar .


Marco Aurélio em seu livro Meditações dirá que


“(…)diante, todavia, dos sofrimentos mais intensos, busca conforto na máxima de Epicuro de que o sofrimento não é intolerável nem eterno, desde que te lembres de seus limites e que a ele nada acrescentes por meio da opinião que dele tens.”

Assim como os estoicos nos ensinam a resistir à dor, não sei bem se resistir é a palavra correta, mas a mudar o olhar sobre aquilo que a provoca, compreendendo que o sofrimento nasce da não aceitação e da crença de que não deveríamos senti-la, a corrida enquanto metáfora da vida, nos ensina a sermos perseverantes e resilientes, qualidades profundamente valorizadas por essa filosofia.


Para os estoicos, viver bem é encarar a dor e as adversidades não como infortúnios, mas como mestres. A dor e as adversidades são parte da natureza, e o homem que busca uma vida com sentido aceita que se algo é natural, então não pode ser ruim.


Viver de acordo com a natureza é viver de forma corajosa, resistindo a dor e buscando o fortalecimento da alma.


Coragem, resistência, fortalecimento , superação , todas essas são palavras que combinam muito com corrida e com uma forma estoica de viver a vida.


Mas voltemos ao corpo. Outra questão que me prendeu no texto de Murakami foi a forma como ele expressa as transformações do próprio corpo e o impacto delas em seu desempenho como atleta à medida que envelhece.


Tenho 47 anos e, obviamente, não tenho mais a mesma disposição dos meus 20. Este corpo, que já pariu três vidas, que enfrentou tantas batalhas silenciosas, que já foi vítima de uma rotina pouco saudável, agora quer correr. E ele pode, no seu tempo, no seu ritmo.


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Mas, como em quase toda atividade que envolva grupos de pessoas (dizem que a corrida é o esporte individual mais coletivo que existe), isso nem sempre é bem aceito. Vivemos sob a cultura do "bem estar", uma saúde moldada em padrões que nem sempre são reais e que eu, sinceramente, não tenho tempo, nem dinheiro, nem disposição para seguir.


Por isso decidi correr sozinha (e sou da época em que isso ainda se chamava cooper) e assim tenho corrido, aceitando meu corpo não tão jovem, e curiosa para descobrir até onde ele pode me levar.


Essa reconciliação com o corpo é uma novidade para mim, é algo que só aprendi depois dos 40 e temos (meu corpo e eu) conseguido viver em uma certa harmonia.


Murakami passou por algo semelhante. Na juventude, costumava observar o próprio corpo e não gostava do que via. Resolveu, como ele mesmo diz, “se virar com o que tem”. E é exatamente isso que tenho feito: me virado com o que tenho, aprendendo com o que sou, e continuando a correr, não contra o tempo, mas com ele.


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Corpo, movimento, vivência e que a história que tenho contado, seja ela de palavras ou de passos, seja sempre honesta e, sobretudo, minha.


E que,  ao final da minha jornada, eu chegue a um lugar de contentamento da forma como Murakami encerra seu relato pessoal. Ele conclui basicamente assim : Não sei até onde a corrida irá me levar, mas espero que seja a um lugar em que eu esteja contente .


No final das contas é isso que importa, que estejamos satisfeitos com aquilo que fomos capazes de realizar por nossas próprias forças.


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📌 Extras


Murakami dá muitas dicas musicais em seu livro e eu, que não gostava de correr com fones de ouvido tenho experimentado (e amado) essa companhia sonora. Tenho corrido ao som de Lovin’ Spoonful (especialmente Do You Believe in Magic ), Red Hot Chili Peppers e The Foundations.


Murakami também menciona Gorillaz, Beck e bandas mais antigas, como Creedence Clearwater Revival e The Beach Boys.


Vale a pena conferir !



©2023 por A leitora clássica 

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